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O trabalho escravo

Descobertas e invenções fazem parte de nosso dia a dia. Comparando o ano de 2015 com o de 1960 ou o de 1970, parece que séculos se passaram. Velhos problemas, no entanto, continuam atormentando a vida de muitos e envergonhando a sociedade. Para chegar logo ao que quero abordar, lembro a cruel realidade do trabalho escravo nos dias de hoje.

É difícil entender que indivíduos e grupos busquem o lucro à custa de pessoas desprotegidas, indefesas e frágeis. Quem luta pela sobrevivência não tem condições de defender seus direitos e sua dignidade. O trabalho escravo torna-se ainda mais cruel quando envolve crianças. “Ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privados da liberdade e constrangidos a viver em condições semelhantes às da escravatura. Penso em tantos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos setores, em nível formal e informal” (Papa Francisco, 01.01.15).

A vocação humana é uma vocação à fraternidade. Somos diferentes, mas temos a mesma origem e a mesma natureza. Somos chamados a construir uma rede de relações para a construção da família humana segundo os planos de Deus. A rejeição do outro, os maus-tratos às pessoas e a institucionalização das desigualdades nos afastam desse plano, pois Deus enviou o Seu Filho ao mundo para a construção da fraternidade entre nós. Contudo, somos livres; temos, pois, o poder de construir um mundo em que as molas mestras sejam o egoísmo e a ganância.

Com a evolução da consciência humana, foi-se percebendo que a escravidão é “um delito de lesa humanidade”. O direito internacional reconhece, hoje, que nenhuma pessoa pode ser mantida em estado de escravidão. Do direito aos fatos há, contudo, uma longa distância. “O flagelo generalizado da exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão. Tal fenômeno abominável, que leva a espezinhar os direitos fundamentais do outro e a aniquilar a sua liberdade e dignidade, assume múltiplas formas” (id.).

Para os exploradores, na base da escravidão encontra-se a convicção de que as pessoas podem ser tratadas como objetos. Ao tomar conta do coração de homens e mulheres, o pecado os afasta do Criador e a consequência aí está: os outros deixam de ser vistos “como seres de igual dignidade, como irmãos e irmãs em humanidade”. Daí para a mercantilização das pessoas é um pequeno passo. Alia-se a isso “a corrupção daqueles que, para se enriquecer, estão dispostos a tudo”, e o ciclo da escravidão está completo. Normalmente, a escravidão requer a participação de muitos intermediários – todos com a mesma intenção: seu enriquecimento pessoal a qualquer custo.

Uma resposta a essa dramática situação é o acesso à educação. Além de abrir perspectivas de emprego, ela possibilita ao ser humano tomar consciência de seus direitos e defender a própria dignidade. É preciso, pois, “por fim ao flagelo da exploração da pessoa humana”, e isso é possível com prevenção, proteção das vítimas e ação judicial contra os responsáveis por essa vergonha. É louvável o crescimento de iniciativas, no âmbito religioso ou da sociedade civil, para “sensibilizar e estimular as consciências sobre os passos necessários para combater e erradicar a cultura da escravidão”. Boicotar produtos que são frutos do trabalho escravo é uma resposta adequada aos que têm como deus a ganância.

Anima-nos a existência, em nosso país, do Ministério Público do Trabalho. De 1995 a 2012, esse Ministério, no combate ao trabalho escravo contemporâneo, inspecionou 3,3 mil estabelecimentos, de onde foram resgatados mais de 43 mil trabalhadores. Tais dados são uma pequena amostra das dimensões do trabalho escravo em nosso país.

Já que a indiferença e o egoísmo estão globalizados, por que não nos unirmos para globalizar a solidariedade e a fraternidade?…

Por Dom Murilo S.R. Krieger – Arcebispo de São Salvador da Bahia (BA), Primaz do Brasil